sexta-feira, 29 de abril de 2016

Alarme em Melgaço (1911)

Praça da República, na vila de Melgaço na época
Após a implantação da República a 5 de Outubro de 1910 e a queda da Monarquia, esperavam-se tempos de paz social e recuperação económica. Contudo, assim não aconteceu. A somar à débil situação económica, o país encontrava-se à beira de uma guerra civil. Os apoiantes do regime monárquico fogem para o norte, especialmente para o Minho e Trás-os-Montes, e daí para a Galiza. Havia rumores de que pelas fronteiras do minhotas e transmontanas, iriam voltar a entrar milhares de combatentes monárquicos. Fala-se que junto à raia seca de Melgaço estaria um número significativo de soldados para entrar em território nacional. No diário espanhol ABC, na edição de 27 de Outubro de 1911, dá-se conta de que em Melgaço se avistaram uns estranhos sinais durante várias noites vindos de terras galegas. A notícia diz-nos que “Un periódico dice que enfrente de Monzón y Melgazo vense, hace ya algunas noches, señales hechas con hachas encendidas. Un telegrama de Melgazo dice que un bando de conspiradores se halla en las poblaciones españolas de Padrenda e Crespos, fronterizas á San Gregorio. Témese que intenten por alli una incursion. Y en otro telegrama se dice que el grupo de conspiradores dispersos en varias poblaciones á San Gregório era de 150. Sábese que se han retirado parte á Tuy y Nieves y parte con destino desconocido. Créese que éste será el grupo mandado por Homem Christo.”
Uns dias antes, na edição de 24 de Outubro de 1911, no mesmo jornal espanhol encontramos uma notícia com o título “Alarme em Melgaço” e que nos fala de rumores de que estaria eminente uma invasão a partir de terras galegas. Na notícia, podemos ler “Comunican de Melgazo que la noche del 21 se produjo un aquella villa gran alarma, por saberse que los conspiradores, en grandes núcleos, se encontraban frente á San Gregorio, con orden de penetrar en la población á las dos de la madrugada. La Guardia Fiscal, algunos soldados y bastantes voluntarios estuvieron toda la noche de guardia en el telégrafo y en la Administración del Concejo. Todos estos preparativos ocasionaron grandes sustos.”
Contudo as autoridades portuguesas procuram acalmar a opinião pública. No mesmo diário espanhol ABC, na sua edição de 27 de Outubro de 1911, encontramos um comunicado do governo português onde se lê “Ha sido facilitada à la prensa, la siguiente nota oficiosa: Reina sosiego em las fronteras del Miño y de Trás-os-Montes. Créese que los rebeldes, que hasta ahora se han mantenido á la altura de San Gregorio, descendieron á las inmediaciones de Castro Laboreiro, en donde las sierras son muy elevadas y las marchas se hacen con gran dificuldad. Los destacamentos continúan á la expectativa y bien preparados”

O período a seguir ao 5 de Outubro de 1910 é uma época da nossa História pouco conhecida mas existem muitas estórias da nossa raia que importa divulgar...    
(Notícias extraídas do Jornal ABC, edições de 24 e 27 de Outubro de 1911)

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Os gados de Castro Laboreiro junto à fronteira e os carabineros espanhóis (meados do século XIX)

Castro Laboreiro (Melgaço), noutros tempos
Em algumas áreas de fronteira em Castro Laboreiro, a linha que separa Portugal e Espanha em tempos não era muito clara. Por vezes, eram frequentes conflitos entre populações e autoridades dos dois lados da raia. Em meados do século XIX, encontramos registos dessas mesmas desavenças relacionadas, por exemplo com os gados no pasto.  Em missiva datada de 16 de Março de 1859, o regedor substituto de Castro Laboreiro (Melgaço), dirigida ao administrador do concelho de Melgaço, queixa-se das arbitrariedades cometidas pelas autoridades espanholas, nomeadamente diversas apreensões de gado dos castrejos por parte de carabineiros espanhóis, alegadamente, em território português: “1º Aprehensão feita dos rebanhos lanigeros e caprinos dos lugares de Adofreire e Queimadelo, e Falagueiras, e Coriscadas, e Cobelo, pelos carabineiros do ponto en Quintela de Leirado, cujos forão arrematados por seis mil e tantos reaes; 2º A tomada de humas bacas de Engracia Esteves do lugar do Rodeiro feitas pelos mesmos; de cujas tomou delas conhecimento o Juiz de Dereito da Comarca e mais o Agente do Ministerio Publico; e por enquanto não se sabe do rezultado; 3º A tomada de outras bacas de João Esteves e Pedro Esteves do lugar do Theso; 4º A tomada de outras poucas de bacas feita a Manoel Fernandes Bispo e outros do lugar de Campelo; 5º A tomada dos gados bacuns dos lugares da Seara e Padrezoiro, 6º A tomada do gado bacum dos lugares das Falagueiras e da Adofreire, 7º finalmente a prizão de hum pobre vendilhão de sal chamado Francisco Fernandes morador nesta Villa, que estava vendendo sal aos galegos na fronteira, porém dentro do nosso territorio chamado o sitio da Senhora da Ana con duas cabalgaduras foi também arrestado para a Cadeia de Ourense, aonde segundo me consta tem de estar tres meses, é quanto tenho a dizer sobre o objecto de se trata.” Nessa mesma altura, encontramos num outro documento mais queixas de abusos alegadamente cometidos por carabineiros espanhóis junto da fronteira, em Melgaço,  feitas ao presidente do Conselho de Ministros e Ministro dos Negócios Estrangeiros, em 18 de Novembro de 1859: “Contaram-me ali, que en certa occasião en que os referidos carabineiros haviam entrado no territorio portuguez no termo de Castro Leboreiro, e aprehendido algumas cabeças de gados dos lavradores que andavão pastando naquellas serras, representando a autoridade portugueza a hespanhola, foram requezitadas algumas testemunhas portuguezas, as quais hindo a Orense, forão lá mandadas encarceirar, e ainda en cima multadas!! V. Exª sabe quanto o espírito de nacionalidade pode influir nas decisões de pleitos, principalmente tratando-se de factos passados en lugares ermos, quando são attendidos como partes dos próprios autores dos factos de que há a queixa.”  (Documentos citados em GODINHO, Paula (2008) - Oir o galo cantar dúas veces)

domingo, 17 de abril de 2016

Agosto de 1919: Pancadaria entre os de Chaviães e os de Paços (Melgaço)

Capela da Senhora de Lourdes (Paços-Melgaço)
Um dos blogues que costumo ler com assiduidade é o “Melgaço, Minha Terra” da autoria do ilustre Joaquim Rocha que pode ler em http://melgacominhaterra.blogspot.pt/  Há dias, li aqui um artigo que me fez recordar as rivalidades entre a malta das diversas freguesias deste concelho e quando inclusivamente se pegavam à pancada... O texto reproduz um artigo de jornal de Agosto de 1919 e centra-se na rivalidade entre a malta de Paços e Chaviães nas festas e romarias... Ora leia: “Lê-se no Jornal de Melgaço n.º 1257, de 3/8/1919: «Está em moda, nas romarias, à tarde ou à noite, haver grossa bordoada. Em Pomares (lugar da freguesia de Paderne), quando no dia 25 se realizava a festividade em honra de São Tiago (Santo Iago), foi o que se viu. No dia 27, quando em Paços se realizava a festividade em honra de Santa Ana, também não faltou a traulitada entre a rapaziada de Paços e a de Chaviães. Que ela se desse em Pomares, quando se festejava o São Tiago, admitimos, visto tratar-se de um herói na traulitada aos moiros; mas tratando-se da avó de Jesus, que decerto devia ser toda bondosa, parece que não fica bem. Mas, como os desordeiros acham sempre bem, toda a vez que podem pregar a sua traulitada, à tarde, pouco depois de recolher a procissão, houve alguns socos, misturados com bengaladas, o que deu em resultado alguns dos de Paços virem até ao lugar do Esporão onde perguntaram aos de Chaviães se queriam guerra ou harmonia. E como os de Chaviães respondessem que se estavam ali era para bater, e como logo em seguida fizessem com uma traulitada baixar ao chão o Ricardo Alves, de Paços, os companheiros deste desafrontam-no, fazendo também ir a terra uns quatro ou cinco de Chaviães. Não podemos de forma alguma elogiar tais proezas, mas se temos de censurar estas, como não devemos classificar o facto de os “valentes” de Chaviães, depois desse dia, baterem em qualquer pessoa que à Portela do Couto passasse, pelo simples facto de ser de Paços? Desconhecemos as razões anteriores que naquele dia os levaram a vias de facto, não podendo, por isso, avaliar bem a responsabilidade de cada grupo, mas o que toda a gente, desconhecendo embora essas razões e até esses factos, tem de censurar com toda a energia dos seus nervos, é o facto de certos “valentes” da Portela do Couto baterem há dias numa mulher de Sá, conhecida por Maria do Romão. Essa mulher deve ter 60 anos de idade aproximadamente, é viúva e doente, e vive distante um único filho que tem. Nada mais julgo necessário para aquela mulher ser digna de todo o respeito; mas os “valentes” da Portela não o entenderam assim. Saem à estrada, onde lhe perguntam de onde é, e – como ela dissesse que era de Paços – dão-lhe logo duas bofetadas. Por acaso será crime o ser natural de Paços porque os desta freguesia bateram nos de Chaviães? Mais juízo, ó “valentes” da Portela, pois do contrário teremos de chamar a atenção da digna autoridade administrativa para as vossas proezas, mandando-vos chamar a capítulo!»   (Extraído de http://melgacominhaterra.blogspot.pt/)

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Melgaço numa viagem aos anos 90 em postais


Melgaço - Vários Aspetos
O blogue partilha hoje uma pequena coleção de postais alusivos ao concelho de Melgaço nos anos 90 do século passado. Talvez seja um tempo que lhe recorda boas lembranças... Viaje no tempo!...
Castro Laboreiro (Melgaço)

Vila de Melgaço - Vários Aspetos

S. Gregório (Cristóval - Melgaço)

Castro Laboreiro (Melgaço)

Calçada - Vila de Melgaço

Vila de Melgaço - Vista para a Praça da República

Vila de Melgaço - Vários Aspetos

Melgaço - Vários Aspetos

Interior do Pavilhão Principal das Águas de Melgaço

Vila de Melgaço - Vários Aspetos

Lamas de Mouro (Melgaço)

Melgaço - Vários Aspetos
Igreja de Paderne - Melgaço

sábado, 9 de abril de 2016

A emigração ilegal e o contrabando na raia melgacense em reportagem

Fronteira entre S. Gregório (Melgaço) e Ponte Barxas
A revista Rua na sua edição online publicou uma reportagem acerca do contrabando e da emigração ilegal na raia do Minho, e em especial nas fronteiras de Melgaço com o título "Nada a declarar". Reproduzo aqui o texto "O contrabando foi o sustento para muitas famílias. Após o 25 de abril e o Acordo de Shengen, a atividade tornou-se obsoleta e a Guarda Fiscal foi suprimida. Percorremos a fronteira em busca de memórias desses tempos. Contrabandistas, guardas-fiscais e passadores eram vizinhos, amigos e até familiares. Hoje, a fronteira está deserta.
 “Na raia não havia nacionalidade. Este espírito de fronteira era de facto diferente” conta Avelino Fernandes, antigo guarda-fiscal. Hoje, aos 68 anos sente saudades da confraternização com os colegas de profissão. Mais a sul, entre Caminha e Valença, onde o rio Minho começa a alargar o seu leito em direção à foz, situa­-se Vila Nova de Cerveira. “Se não fosse a emigração isto estava tudo muito mal. O que é que faríamos?”, a saga dos contrabandistas que atravessavam o rio Minho é contada por João José Costa Oliveira, mais conhecido como ‘Catrelo’, hoje com 77 anos. “São Gregório virou uma localidade fantasma. Havia três ou quatro lojas que vendiam uma barbaridade. Acabou-se o cambio da moeda”, relembra  Alfonso Viso, um espanhol apaixonado pela história da região. Em Melgaço, todos dizem conhecer alguém que andou no contrabando, mas poucos são os que têm vontade de falar, quer por receio de represálias antigas, quer por pressões familiares. “Infelizmente, algumas pessoas têm um certo receio de falar porque se sentem reticentes, mas há outros que fazem-no com muito prazer, com muito orgulho”, diz Catarina Oliveira, socióloga e funcionária do museu Espaço Memória e Fronteira.
O Trancoso, um pequeno afluente do rio Minho  que pode ser cruzado a pé  fez desta fronteira uma das mais conhecidas do país. O rio, de curto caudal, também fazia parte da rota do contrabando. Trazer a mercadoria de um lado para o outro era uma arte que podia ser crime mas que não era pecado. Pão, açúcar, ovos, sabão, café e tecidos eram alguns dos produtos contrabandeados. A fronteira não delimitava a ação de homens e mulheres, adultos e crianças que percorriam a obscuridade para ir buscar ao lado de lá o que fazia cá falta. 
Estamos com um pé em Portugal e outro em Espanha na fronteira de São Gregório, freguesia de  Cristóval. Andávamos à procura do marco número 1, em Cevide,  a localidade portuguesa conhecida por ser o lugar mais setentrional de Portugal, quando decidimos dar um salto a Espanha. Nos dias de hoje, quando atravessamos a fronteira para a Galiza não há nenhum guarda para nos pedir o passaporte. Antigamente, para ir comprar alguma coisa ao outro lado – quer porque cá não havia ou porque lá era mais barato –, a adrenalina seria diferente. Parámos no café Frontera, em Ponte Barxas, Padrenda, onde encontramos Alfonso Gómez Viso. O galego conta que anda a promover a localidade de Padrenda e que escreveu um livro sobre a região, ainda à espera de ser editado. Convida-nos a fazer uma visita guiada pela zona da antiga ramboia  o termo galego usado para falar do contrabando nesta zona.
 “Eu, com quatro anos, dormia em cima das caixas das bananas”, conta  Alfonso Gómez Viso. Com 37 anos, as memórias que tem do contrabando cingem-se aos anos 80, quando o tráfico de mercadorias aparece em grande escala. Gado e bananas são os produtos mais conhecidos, mas também se passavam outras frutas, vacas e porcos de um lado para o outro. Nas aldeias raianas havia uns barracões, as garagens, onde guardavam tudo. Catarina Oliveira conta que “as pessoas que se recordam dessa altura, falam de um contrabando não tanto impactante como o de antigamente”. 
Subimos a Serra do Laboreiro. Num instante estamos em Espanha e sem dar conta regressamos a Portugal. Parámos na fronteira entre uma aldeia portuguesa e uma galega, Alcobaça e Azureira, separadas pelo Rio Trancoso. Para além do tradicional marco fronteiriço nada indica que mudámos de um país para outro, a fronteira não passa de uma linha imaginária entre marcos situados a muitas centenas de metros uns dos outros.
  Para lá fica Portugal, para cá fica Espanha.
É um sotaque português, vindo de uma senhora vestida toda de preto, com um lenço na cabeça. Eu, do lado português. Ela, do lado espanhol. Dois palmos distanciavam-nos.
 Não quer contar uma história do contrabando?
 Eu não sei nada do contrabando, ainda para mais sou mulher de um guarda. Como é que posso saber?
 A proximidade do comércio espanhol fazia com que a população se deslocasse às terras vizinhas para poupar. “Aqui, o contrabando era de alimentos, televisores, marisco. Era o contrabando de não pagar o imposto. De passar de um lado para o outro sem tirar dividendos disso”, explica Alfonso. Inicialmente, na década de 40, o contrabando começou com o café porque Portugal tinha-o em abundância e era de melhor qualidade. “Também levavam sabão porque as principais fábricas situavam-se no norte. Em compensação, bens alimentares como arroz, açúcar amêndoa, chocolate, eram mais baratos em Espanha e vinham de Espanha para Portugal”, explica Catarina Oliveira.
“É muito curioso. Aqui dizem que as vacas mudavam de cor. Mas o que acontecia é que mudavam de sítio. O vitelo ia para Espanha e a vaca ia para Portugal”, conta Alfonso. É frequente haver terras de cultivo de um mesmo proprietário com metade em Portugal e metade em Espanha. “Era a desculpa perfeita para passar o gado de um lado para o outro. Não era um contrabando mau, era de subsistência. As pessoas têm receio de falar porque não querem assumir que era uma forma de vida que havia”, acrescenta Alfonso.
A ponte é o que marca a zona de contrabando das pessoas desta zona. Uma garagem, outra garagem, mais uma garagem. “A sinalética é típica, quando deixavam uma janela aberta queria dizer que podiam passar. Estava tudo acordado com o guarda”. Hoje em dia, está tudo fechado. Destas garagens saiam e entravam produtos. Um dos locais era a povoação de Cela, onde se construíram enormes garagens nos anos 70 e 80.
Regressamos a Alcobaça, a aldeia onde começa a raia seca. A aldeã conta-nos: “Na Azureira havia ainda aqui três lojas, veja lá, para vender a quem?” Durante as noites, as lojas estavam abertas para se poder conviver, beber cerveja e petiscar. Alfonso continua a nossa visita guiada: “Aqui era mais convivência porque toda a gente conhecia tudo. Agora não há ninguém”. A aldeã remata: “Estavam abertas quando a gente lhes batia à porta”.
“A ‘pareja’ já tinha passado para cima. Havia a hora da muda, que era quando nós atuávamos”, explica o antigo contrabandista. O chamado ‘aguardo’ era feito por dois soldados que percorriam os locais por onde poderiam passar os contrabandistas. Havia um pacto de cavalheiros: quando o guarda avistava alguém, gritava “larga!” ou dava alguns tiros para o ar. O contrabandista devia deixar a mercadoria e fugir sem que os guardas fossem no seu encalço. “Os contrabandistas têm histórias de como nos conseguiam enganar e nós temos as nossas histórias. Às vezes, juntamo-nos e até vamos tomar um café. É uma forma de revivermos um pouco esta vida e esse tempo que aqui se passou”, conta Avelino Fernandes, conta o antigo guarda-fiscal.
 Evitavam-se os guardas-fiscais do lado de cá e os carabineiros do lado de lá. O contrabandista socorria-se de truques e artimanhas para passar a mercadoria. O guarda-fiscal fazia o mesmo, mas no sentido inverso. Era o jogo do gato e do rato que fazia parte do quotidiano e que serve hoje para confraternização nesta zona. Era uma fronteira de oportunidades onde familiares, amigos e vizinhos partilhavam o dia-a-dia. Hoje, a zona raiana está isolada, desertificada. O antigo guarda-fiscal explica que a força tinha mais deveres do que fiscalizar os bens que atravessavam a fronteira, sendo a vigia e a segurança nacional um das missões mais importantes. “Isto era a sentinela da nação. A Guarda Fiscal fazia apreensões aonde os apanhava. Havia aqueles mais habilidosos que diziam: ‘deixa-me ir embora e tal’. Hoje, se vai na estrada e a guarda quer multá-lo, o que é que faz? Se ele tiver um coração mais mole, diz: ‘vá, vá-se lá embora’. Se encontra um com coração mais duro vai multá-lo e acabou! Aqui era igual”. 
 A gradual abertura à livre circulação provocou a extinção do contrabando tradicional. Em Melgaço, encontrámos São Gregório, na freguesia de Cristóval, que outrora vivia sob uma azáfama de pessoas à procura de um negócio ou de uma oportunidade. Quando as fronteiras abriram os comércios fecharam e hoje é uma localidade deserta marcada pelos vestígios da antiga alfândega moribunda e das casas dos guardas. 
 Catarina Oliveira recolhe testemunhos de contrabandistas e de passadores pela região de Melgaço. “Conheci vários tipos de contrabandistas, desde aqueles que o praticavam para sobreviver, porque as famílias eram numerosas na altura e viviam principalmente da agricultura; os outros eram os patrões, os detentores do monopólio. Havia hierarquias dentro do contrabando”.
“Vivia-se na miséria”, conta Catrelo. Ser contrabandista era ter uma vida de perigos. A possibilidade de se ser preso pela Guarda Fiscal, quando ainda em Portugal, ou, bem pior, ser-se preso pelos carabineiros, quando já dentro de Espanha, era real. Havia ainda o perigo de cair em algum poço de água. No entanto, o maior medo dos contrabandistas portugueses era ser apanhado por uma bala perdida de um carabineiro. Catarina Oliveira, socióloga na Câmara Municipal de Melgaço, conta-nos que “os carabineiros atiravam a matar! Sem dó nem piedade. Os guardas-fiscais eram mais fáceis. O ordenado deles não era excepcional”. Catrelo acrescenta: “Os carabineiros, havia uns que comiam, outros que não. Eu tinha muita confiança lá. Na zona raiana tenho mais amigos na Espanha do que cá. Quando o Vaqueiro e o Gaúcho dissessem pára, tinha-se mesmo de parar”. Para exemplificar conta-nos uma história: “Num dia que não pude ir aconteceu a tragédia. O meu colega, (José Maria Pereira, o Ratinho) levou um rapaz novato. O carabineiro gritou: Alto! Mas o rapaz não parou. Se ele parasse não lhe acontecia nada porque ele não tinha nada. Mas assustou-se e começou a correr. Aconteceu a desgraça. Matou, matou”. Não vemos lágrimas nos olhos do antigo contrabandista mas a exaltação revela desconforto e angústia ao recordar a situação. A socióloga explica que “a miséria era para todos e assim todos tinham a ganhar. Cada um recebia a sua parte. Em dinheiro ou em mercadoria. Temos registos de apreensões, tanto da Guarda Fiscal como da Guarda Civil”. 
Normalmente, o contrabandista era pessoa conhecida. “Os criminosos, nós não sabíamos o que ali estava. Podiam ser assaltantes de bancos, pessoas à mão armada que tentavam fugir pela fronteira, clandestinamente. Chegamos a prender alguns indivíduos”. Na zona fronteiriça, era obrigatório passar na alfandega quando se queria ir a Espanha. Segundo Avelino Fernandes, as pessoas tinham de pagar para passar. “Havia de tudo. Havia malfeitores. Havia pessoas que pediam para ir a Ourense porque estavam doentes. Era a vida da fronteira”. 
 A zona raiana, São Gregório e Chaviães eram as zonas da manobra. Ficavam lá e só regressavam à terra ao fim de semana. “Íamos para lá ganhar seis escudinhos”. O trabalho de contrabando era feito em rede e bastante organizado. Sempre que havia mercadoria a passar, o trabalho de preparação começava cedo: o “contrator”, responsável pela operação, mandava o “garoto” dar o recado aos “carregadores” que transportavam, às costas, a mercadoria. Na zona de Vila Nova de Cerveira, Catrelo conta que levaram um camião de barco para Espanha. “Desmontámos um camião Volvo no meio de um campo de milho. Para a cabine, eram nove homens. Quem trouxe o saco das ferramentas fui eu, centenas de chaves que até arriava. Eu era um espia, eles iam no barco e eu ficava a vigiar. Havia os guardas, uns enfiavam o barrete e outros não. Cada um safava-se”, conta. 
Nascido em 1937, João José Costa Oliveira foi para Melgaço em 1957. “Foi lá que aprendi com o Manuel da Garagem, o maior contrabandista que houve na zona norte. Era o chefe da equipa daqui da zona do contrabando: lingotes, cobre, emigração, café”. Era à hora combinada, sempre à “primeira hora”, quando o dia adormecia que o grupo se juntava e ia buscar a carga, tomando conhecimento do percurso e do destinatário. “Diziam-nos: precisas de estar ali em tal sítio. Não há que falhar! Mais tarde é que abri os olhos e trabalhei por minha conta. Mas antes é que foi o duro do contrabando”. Quando interrogado acerca da sensação que sentia, Catrelo não hesita em responder: “Não sentia medo nenhum porque a gente já estava viciado naquilo e o serviço tinha que se fazer sem prejudicar o patronato. Nunca falhei aos meus patronatos!”
O contrabando não era só de mercearia. Pelo rio Minho passava também gado. Catarina Oliveira fala-nos que os porcos levavam-se pelo rio. “Há quem conte que também os passavam a nado”. No rio Minho usavam uma batela para fazer a passagem. Quase sempre durante a noite. Havia uma grande conveniência com a Guarda Fiscal, mas havia aqueles que eram mais fiéis ao regime e que não contemplavam a atividade. O contrabandista cerveirense exemplifica: “Cheguei a trazer suínos injetados no barco, de lá para cá. Trouxemos três. Quando vínhamos do barco já estrabuchavam”.

Emigração
 O contrabando de mercadorias também o foi de pessoas. “É engraçado que estas pessoas esquecem-se de muitas coisas, mas não têm dúvidas sobre o dia que marcaram a viagem, o dia que partiram e o dia que chegaram a França”, conta Catarina Oliveira. 
Catrelo percorria o Alto Minho como árbitro da associação de futebol de Viana do Castelo. Usava-o para ir recrutando pessoas para dar o ‘salto’. “Quando aqui não se podia passar na emigração, arrancava-se com eles nos carros. Telefonávamos para a Dona Maria e para os filhos. Ficavam lá numa serração e ia um táxi levar as malas.” Conta-nos que tinha já tudo combinado com os passadores em Espanha e que um dos cafés, próximos da linha de comboio, abrigavam os portugueses até a hora de partir chegar. 
Depois do 25 de abril, o contrabando e a emigração não pararam. “Levei centenas delas. Trabalhava para os outros, ganhava 500 escudos”. Aprendida a arte de passar as pessoas para o outro lado, começou o negócio por conta própria. “Eram 1500 escudos para os por lá na França”. Numa madrugada, pelas cinco da manhã, um táxi parou à porta da sua casa. Ao lado do condutor estava o chefe da polícia de Vila Fria. “Era o senhor Abel.” Catrelo recorda: “Perguntei se havia novidade”. Havia sim, o taxista, Joaquim Vilaça pediu-lhe para levar a filha do senhor Abel para França, porque esta iria casar dentro de dois dias. Catrelo teve receio que fosse uma ratoeira e ainda tentou escapulir-se. No entanto, após verificar que o assunto era sério, aceitou fazer o serviço. “Aqui há ratoeira, tive medo! Mas disse que ainda que fosse preso, se ela quisesse ir no dia seguinte, que estivesse na caseta ao dar o meio-dia”. A filha do Senhor Abel partiu e nada aconteceu a Catrelo. São muitas as histórias que nos conta e as atuais são sobre as pessoas que regressam e o reconhecem. “Às vezes, aparecem aqui tantos e tantos que me dizem: ‘já não me conhece mas foi você que me levou para a França”.

A Guarda Fiscal
 Em São Gregório encontramos Avelino Fernandes, um antigo guarda-fiscal. “Vivi naquele período que toda a gente detestava. No dia que abriu a fronteira deitaram foguetes ali no bar. Passado uns anos estavam todos a chorar”. A Guarda Fiscal foi o braço armado do Ministério das Finanças, particularmente da Alfândega Portuguesa. Tinha como principal missão evitar e reprimir as infrações fiscais. O objetivo era a obtenção de receitas, defendendo os interesses da Fazenda Pública. Aos guardas era exigido o cumprimento da lei, independentemente dos atos que tivessem de tomar. Qualquer objeto era considerado suspeito e todas as pessoas que passassem a fronteira eram alvo de fiscalização. 
Os habitantes de São Gregório sentem imensa pena de ver a antiga alfândega e as casas dos guardas degradadas. “Na altura, havia imenso movimento. Havia uma senhora que tinha uma taberna. Ela ajudava-os a passar. Tudo se sabia aqui. Quando via que alguém vinha para emigrar fazia um sinal de divisa, para informar que ali estava um guarda”, conta Catarina Oliveira.
Com a implementação em 1992 do Acordo de Livre Circulação de Pessoas e Bens no território da Comunidade Europeia, a fronteira terrestre deixa de ser relevante como marco de defesa do território. A Guarda Fiscal é extinta em 1993, sendo desativados todos os postos. “Não houve drama nenhum. Uns foram integrados na Guarda Nacional Republicana (GNR) e outros reformaram-se. O drama não foi por aí. Houve sempre um sentimento da Guarda Fiscal que ainda hoje existe. Ainda hoje fazemos convívios. Aquele sentimento mítico é muito difícil de se apagar. Nós éramos como uma grande família. Fui para a GNR e fui muito bem estimado lá. Integrei-me muito bem. Mas, claro que estive muitos anos na Guarda Fiscal e é difícil”, ouvimos estas palavras de um saudoso Avelino Fernandes. No entanto, a indignação também toma conta da sua voz: “Quantos empregos se perderam na fronteira? Foram milhares! Nós éramos privilegiados. Havia um nível de vida alto. Vivia-se bem. Ganhava-se dinheiro, gastava-se.”
Avelino conta-nos que foi destacado para São Gregório em 1973, ano em que o Almirante Américo Tomás veio visitar a fronteira. ‘Aqui começou Portugal’, lia-se na pedra recém inaugurada pelo Almirante. “As letras roubaram-nas, a pedra ainda lá está”, refere o antigo guarda-fiscal e continua: “Quando se deu o 25 de abril, as pessoas que apoiavam o Almirante e apoiavam o regime fascista viraram-se”. 
O antigo guarda-fiscal recorda: “Vim para a Guarda Fiscal com o Marcelo Caetano. Verificou-se ali uma abertura liberal. Claro, a mentalidade dos guardas mais antigos era diferente da nossa. O guarda tinha que ter um comportamento muito disciplinar em relação ao contrabando. Eles (os guardas mais velhos) apreendiam qualquer coisa e os mais novos já eram mais passivos”.
Apesar de desempenhar as suas funções como guarda-fiscal, não estava de acordo com muito do que se passava no antigo regime, “chegámos a ter conflitos com a polícia política. Eles eram capazes de nos complicar a vida, no entanto, tínhamos boas relações. Havia determinados assuntos que a gente dizia ‘isto não está bem’” e a resposta não tardava “Cale-se que o senhor pode ser incomodado”, recorda Avelino. 
A antiga casa da alfândega é feita em pedra com grandes arcos que antecipam a entrada. “Ninguém gosta de ver uma casa destruída, gosta? Uma arquitetura tão linda”. Os edifícios, na grande maioria foram entregues ao abandono, à degradação e à vandalização. “A nossa autarquia devia arranjar aquilo conforme a sua arquitetura original.” 
Avelino gostaria de ver este património aproveitado, como por exemplo, um incentivo ao turismo. “Como o Museu Memória e Fronteira. O contrabando foi aqui, não foi lá (Melgaço). Não há nacionalismo nenhum. Como é que se pode abandonar um edifício assim? Como se pode abandonar Portugal? Criou-se ali o museu do contrabando, mas abandonou-se um pouco o tema. Era como fazer em Lisboa um museu da agricultura”, partilha connosco.
Entramos na alfândega. Avelino caminha ao longo de todas as salas como se tivesse acabado de entrar em casa. Por momentos, parece estar novamente em tempos longínquos. A secretaria, o sítio de transmissões, a zona reservada aos oficiais, o quarto do oficial, o quarto de banho, a cozinha, a caserna. “Agora já não dá gosto vir aqui porque está tudo destruído”. 
 No entanto, Avelino Fernandes reflete acerca do impacto que o contrabando tinha na vida dos que habitavam estas localidades: “O contrabando na fronteira terrestre era feito pela nobreza, pelo clero e pelo povo”. Corremos contra o tempo para preservar a memória dos tempos dos contrabandistas. Já não são tantas as memórias vivas que nos podem esclarecer sobre aquela época para percebermos que no Alto Minho a fronteira era apenas uma linha invisível. “Foi um sistema de vida. O melhor da minha vida já foi. A vida intensiva que tive aqui, acabou”.

Texto de Luís Leite. Leia a reportagem na íntegra em http://www.revistarua.pt/Noticias/Nada-a-declarar

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Castro Laboreiro (Melgaço) à beira de uma invasão? (1912)

Castro Laboreiro (Melgaço)
Após a implantação da República em Portugal em 5 de Outubro de 1910, os partidários da monarquia puseram-se em fuga. Falava-se que se refugiaram no norte do país e depois na Galiza. Acreditava-se que se estava a preparar uma invasão a partir de terras galegas com o objetivo de derrubar a República e restaurar a Monarquia. As forças monáquicas eram lideradas pelo General Paiva Couceiro e aquelas estariam a fazer entrar em Portugal uma grande quantidade de armas antes da grande invasão. Esta teria lugar pelas fronteiras norte do Minho e Trás-os Montes. A raia melgacense estava bastante vigiada já que havia rumores que as forças monárquicas estariam prestes a atravessar a fronteira. A esse respeito, numa sessão do Senado, a 8 de Maio de 1912 o deputado Alves da Cunha demonstrava preocupação com um rumor de uma possível invassão pela fronteira castreja da Ameixoeira. Fala então nestes termos: “Eu desejava que estivesse presente algum dos Srs. Ministros, para formular as observações que tenho em mira, não obstante a falta de S. Ex.as informarei o Senado. Desde há dias que vem sendo narrado nos jornais um acto que, dalguma maneira, tem sobressaltado a cidade de Lisboa e parte.do país. Quero referir-me àquela invasão couceirista ao porto da Ameixoeira, Castro Laboreiro, em Melgaço. Todos nós estamos convencidos de que a projectada contra-revolução monárquica não pode frutificar, nem dar mais do que o resultado de não deixar caminhar o trabalho nacional com o sossego e serenidade de que precisa. Mas a verdade é que não se trata duma incursão couceirista, cujas hostes assinalaram já o seu valor, fugindo aos primeiros tiros dos soldados da República. Trata-se, apenas, duma habilidade de contrabandistas, conforme se lê em um jornal do Alto Minho, e que é a terceira no género. Vou, pois, informar o Senado, para que todos estejamos de sobreaviso, a fim de que estes boatos não venham impedir a marcha regular da República, pelo alarme que, em geral, produzem. Há muito tempo — não digo bem — desde que os couceiristas estão na Galiza, espalhou-se que em casas da raia do Norte havia armas escondidas, destinadas aos conspiradores; e entre elas apontou-se o convento de Ganfey, próximo da Praça de Valença, de que é coproprietário um genro do digníssimo Presidente da nossa República. O convento foi cercado, despovoando-se para isso os postos fiscais até Cerveira. Resultado... ser introduzido no país importante contrabando, que os negociantes de Tuy avaliaram em muitos contos de réis. Uma habilidade. O boato tinha produzido os seus desejados efeitos e o mal-estar geral sentiu-se. Mais: S. Mamede é uma freguesia entre Valença e Monção, onde existe uma quinta e casa pertencentes a um irmão do ex-Ministro da Guerra, o Sr. Pimenta de Castro. Pois bem, espalhou-se que havia lá um grande depósito de armas destinadas aos conspiradores, e tanto bastou para a guarda fiscal se deslocar, que era o que se pretendia para a salvo se introduzir o contrabando, e ir pôr cerco à casa. Dirigiram-se para a quinta de S. Mamede, foram até muito bem recebidos pelo Sr. Caetano Pimenta e, afinal, verificou-se que não havia lá armas. O que houve foi um truque para iludir a guarda fiscal. Ultimamente, na Ameixoeira, Castro Laboreiro, deu-se o mesmo caso. Apareceu um homem a cavalo, ofegante, galopando, e anunciando aos pobres guardas que fugissem, porque sobre eles ia cair uma avalanche de couceiristas, que se dirigiam àquele posto fiscal. Os pobres homens abandonaram, com efeito, os seus postos e o contrabando entrou. Seria de armas? Seria de mercadorias? Não sei. Diz-se que o bando levou do posto fiscal as armas e munições que os guardas lá tinham, mas o jornal a que me referi diz não ser isso verdade. Esta invasão, pois, transformou-se numa incursão de contrabandistas. Disse-se aqui que o General da Divisão informara o Sr. Ministro da Guerra, dizendo-lhe que se tratava de couceirisias, de realistas. Não o creio. Nestas circunstâncias, são duas vezes prejudiciais estes boatos para a República: primeira, porque as fazendas introduzidas fogem ao imposto devido, e que tinham de pagar; segunda, porque sobressaltam e incomodam o espírito nacional. Embora não esteja presente nenhum dos Srs. Ministros, eu não podia deixar de prestar estas informações nesta casa do Parlamento, para tranquilidade de todos, as quais, decerto, chegarão ao conhecimento dos Srs. Ministros.”

domingo, 3 de abril de 2016

A água de Melgaço: pura, selvagem e heroicamente ferruginosa

Água de Melgaço
Na edição do suplemento LIfestyle do jornal "Público" de antes de ontem (1 de Abril), o escritor Miguel Esteves Cardoso refere-se às Águas de Melgaço e rotula-a com adjetivos elogiosos. Escreve nestes termos: "Há blogues tão apetitosos que, quando vão de férias, causam ansiedade aos viciados. É o caso do magistral Restos de Colecção, de José Leite.
Mas até nisso tem pinta. Numa nota aos leitores, escreve: “Caros leitores, Por me encontrar ausente do país a publicação de novos artigos está suspensa até à segunda quinzena de Abril”.
O blogue é tão procurado que quando escrevo “Água das Lombadas” no Google aparece logo o belíssimo trabalho de José Leite, datado de 6 de Outubro de 2011, sobre a lendária água mineral de São Miguel.
A Água das Lombadas era a minha água mineral preferida mas desde a catástrofe de 2008, em que uma derrocada destruiu a unidade de captação e engarrafamento, que deixou de existir.
Como escreveu Adelino Mota Oliveira no glorioso Açoriano Oriental — o mais antigo jornal português — a água mineral das Lombadas “é uma riqueza que existe e que está, simplesmente, votada ao abandono”.
Vale a pena ler a crónica toda, com a ironia melancólica mas realista do autor.
Num dos anúncios da Água das Lombadas reproduzidos nos Restos de Colecção lê-se (com as maiúsculas originais) que “O ácido carbónico é NATURAL – Não é, como em algumas águas, introduzido artificialmente. É ÁGUA CARBO-GAZOSA NATURAL”.
Hoje as águas minerais que jorram da nascente já com bastante gás (mais concretamente com anidrido carbónico superior a 250 miligramas por litro, segundo o site da Unicer) chamam-se águas minerais naturais gasocarbónicas.
As melhores águas minerais gasocarbónicas pertencem à Unicer: a Vidago, a Água das Pedras e a Melgaço. São também excelentes as duas águas lisas da Unicer: a água Mineral Vitalis (da serra de São Mamede e da serra das Águas Quentes ,em Mação) e a água de nascente Caramulo.
A água de Melgaço é porventura a última água mineral gasocarbónica que é engarrafada tal e qual é captada. Tem um sabor formidável a ferro, como tinha a Água das Lombadas, e tem as mesmas propriedades restauradoras.
Apenas existe em garrafinhas impecáveis de vidro de um quarto de litro. Mas apetece beber logo duas de seguida. A água de Melgaço, tal como a das Lombadas, é uma água de amar ou odiar.
Numa prova recente, houve três pessoas que odiaram (a Maria João, a Sara e a Tristana) e duas que adoraram (o meu neto António e eu). O António apreciou o carácter “vulcânico” da água de Melgaço. A água das Lombadas era genuinamente vulcânica mas a de Melgaço tem a mesma alma de ferro e fogo.
A Água das Pedras também era uma água de amar ou odiar. Havia quem bebesse só pelo efeito digestivo, sem gostar do sabor. Hoje em dia vai sendo difícil encontrar quem a deteste com a paixão do século passado.
Suspeito que a Água das Pedras tenha sido aperfeiçoada pela Unicer. Continua a ser uma água deliciosa mas não é a Água das Pedras de antigamente. A Unicer esclarece no rótulo e na ficha técnica que ambas as versões da Água das Pedras (a Pedras Salgadas e a Levíssima) foram “submetidas a um método de adsorção autorizado”.
Claro que continuam a ser naturalmente gasocarbónicas. Nada têm a ver, por exemplo, com a Perrier que, apesar de muito boa, é “uma água mineral reforçada com gás proveniente da mesma nascente”.
Fazem o mesmo com a Vidago. A Vidago é outra belíssima água gasocarbónica mas também foi aperfeiçoada. É diferente da Vidago do século XX, mais agradável e ligeiramente mais gasosa talvez.
Estou tão agradavelmente habituado às versões com “método de adsorção autorizado” que ficaria escandalizado se alterassem o método. No entanto, gostaria muito se houvesse versões da Água das Pedras e da Vidago originais, tal qual jorram da nascente, sem serem submetidas a qualquer método que não o engarrafamento.
A Água de Melgaço é, por isso, um monumento gasocarbónico que deve ser celebrado e mantido a todo o custo. Tem toda a força ferruginosa das origens. É bom ter em casa uma garrafeira de águas minerais naturalmente gasocarbónicas, começando pela mais levezinha (a Vidago), passando pelas duas versões da Água das Pedras e acabando na Água de Melgaço que, por ser original, é a que parece ter menos gás.

As águas minerais e de nascente que não são gasocarbónicas são outro campeonato, sejam mais ou menos gaseificadas. Algumas são muito boas, outras menos agradáveis. Ficam para outra altura. Bom proveito!"             Texto de Miguel Esteves Cardoso em http://lifestyle.publico.pt/napontadalingua/359693_a-agua-melgaco-e-pura-selvagem-e-heroicamente-ferruginosa

sexta-feira, 1 de abril de 2016

A realidade de Melgaço em 1950 e os problemas da fronteira discutidos na Assembleia Nacional

Complexo Alfandegário de S. Gregório (Melgaço)
Em 1950, vivia-se em pleno Estado Novo. Melgaço, como o país em geral atravessa tempos difíceis. O contrabando e a emigração são fenómenos muito familiares nesta terra raiana. Na sessão parlamentar de 23 de Março desse ano, o deputado Eliseu Pimenta fala da dura realidade em que se vive por cá e reclama a abertura de vários postos fronteiriços e a conclusão do Complexo Alfandegário de S. Gregório e das vantagens que isso poderia trazer para a melhoria da vida na nossa terra. O deputado citado refere-se ao assunto nestes termos  "Não quero falar agora da necessidade da reabertura das fronteiras de Peso (Melgaço) e de S. Gregório, que tantos benefícios poderá trazer ao concelho mais setentrional de Portugal, pois estou convencido de que tal reabertura não deve demorar muito tempo.
Por parte das autoridades espanholas, segundo elas próprias me informaram, há o maior desejo de que isso aconteça, e creio que falta apenas do nosso lado a conclusão de uns edifícios que o Estado mandou construir para a instalação da alfândega e da Polícia Internacional em S. Gregório e que honram o nosso país.
Os estrangeiros que dentro em breve atravessarem a ponte internacional, vindos do Norte e Nordeste de Espanha, encontrarão no seu primeiro contacto com Portugal a amabilidade dos agentes, a perfeita organização dos serviços de fronteira e a ideia nítida da ordem e do bom gosto, próprios de um país civilizado.
E nesse aspecto turístico tem-se caminhado muito bem em Portugal.
Há, porém, uma situação, criada a partir da guerra de libertação da Espanha, que necessita de ser solucionada, pois afecta os interesses legítimos de muitos portugueses que possuem terras no país vizinho.
Talvez V. Ex.ª, Sr. Presidente, não saiba que numa extensão de cerca do duas dezenas de quilómetros, e com pequenas soluções do continuidade, ambos os lados da fronteira, marcada pelo pequeno rio Trancoso, afluente do Minho, se não são de Portugal, porque só um deles politicamente o pode ser, pertencem a portugueses.
Muitos terrenos de cultivo e do mato da província de Orense, frente às freguesias de Fiães, Lamas de Mouro e Castro Laboreiro, desde há séculos, talvez desde a fundação, que são de portugueses, habitantes dessas freguesias, que os vêm transmitindo, patriòticamente, de pais a filhos.
E esta influência portuguesa fez-se sempre sentir de tal maneira que, ainda não há cinquenta anos, muitos espanhóis da querida Galiza - que tão próxima está sempre de todos nós, habitantes de lugares raianos - vinham baptizar os filhos e enterrar os mortos a Portugal.
Nesses bons tempos não havia entraves à passagem da raia para os que cultivavam os seus terrenos na outra margem do Trancoso, levando sementes, estrumes, gados e alfaias agrícolas, e regressando a Portugal com os frutos da terra.
Bastava atravessar o rio pelos pontões ou até a vau ou a seco.
A certa altura, embora o trânsito de pessoas continuasse a ser livre, sujeitou-se o do gado a guias passadas pela Guarda Fiscal em S. Gregório e visadas pelos carabineiros em Puente Barjas, que tinham a duração de seis meses. Em 1936, com o início da guerra de Espanha, todas as facilidades desapareceram, e se as restrições se justificaram durante os anos de luta armada contra o comunismo, em que tão valentemente se bateram os nossos vizinhos, não vejo hoje razão para que se não regresse à situação anterior, e muito menos quando à tradicional amizade entre os povos corresponde o melhor entendimento entre os Governos. Isto é, aquilo que se fazia quando vivíamos de costas  voltadas, não se faz hoje, que nos abraçamos sem desconfiança.
Os lavradores portugueses vêem-se em dificuldades para cultivarem os seus terrenos situados em Espanha, e se o fazem ainda, embora à custa de imensos sacrifícios materiais, isso se deve principalmente à boa vontade das autoridades espanholas.
E diga-se, é certo apenas como nota à parte, que essa boa compreensão se manifesta em outro trecho da fronteira do Norte, ao consentirem que os rebanhos dos portugueses vão a apascentar ao seu território, suprindo assim as dificuldades injustificadamente levantadas aos povos pelos serviços florestais e que, apesar dos reparos feitos nesta Assembleia, não se procuraram diminuir.
Creio que o que acabo de expor relativamente aos portugueses que possuem terrenos em Espanha é já do conhecimento dos ilustres Ministros do Interior o dos Negócios Estrangeiros.
Faço votos, portanto, e confio em absoluto na solução, para que, do acordo com o Governo Espanhol, Governo amigo, o problema seja resolvido satisfatoriamente. Tenho dito."