sexta-feira, 27 de maio de 2016

Memórias de uma passeio por Melgaço em 1903

Vila de Melgaço, vista de sul, no início do séc. XX 
No início do século passado, Melgaço era ponto de interesse para turistas, sobretudo aqueles que procurava no Peso a cura para as suas maleitas. Passaram também pela nossa terra alguns dos maiores vultos da ciência, que aqui se deslocaram para estudar os nossos monumentos bem como os singulares usos e costumes das aldeias do nosso concelho. Um desses vultos foi Guilherme de Oliveira. Dessa visita resultou o livro “Uma Visita ao Real Mosteiro de Fiães” onde nos conta os seus passeios por terras melgacenses. Pelo Peso, Prado até Roussas e Fiães, onde não resiste a contar-nos algumas estórias da sabedoria popular que por lá ouviu. No livro podemos ler “O Minho é o rival da Suíça, no elegante dizer do primoroso estilista D. António da Costa, naquele seu livro, a que deu por título o nome desta encantadora região, aonde alguns antigos quiseram que fossem os Campos Elísios; — o paraíso pagão, segundo Homero, — em que os homens gozavam uma vida doce e tranquila.
Li que, tudo quanto a imaginação dos poetas figurou naquele lugar de paz e bem-aventurança, — parece ser a descrição deste formoso terreno. Há também uma perfeita comparação do Minho, com um mar, que depois de agitado pela maior das tempestades e erguido em ondas temerosas, fosse tornado, de repente, imóvel pela mão do criador, tais e tão vários são os acidentes do solo.
Os montes e os vales que se sucedem lembram as ondas enfileiradas do oceano revolto, havendo sobrepostas naqueles como espumas — pedrenias calvas e ermas — a solidão e o recolhimento; — e no fundo destes, como carinhoso leito, — as verduras e sombras; — a vida e seu ruído.
Isto, vinha-me à recordação, quando trepava pelas escarpadas serras que do Melgaço vão ter ao arruínado mosteiro de Fiães, e descobria as deliciosas paisagens que ante meus olhos surpresos se desenrolavam pelo horizonte fora.
Lá ia eu realizar o meu mais profundo desejo. Lá ia eu cumprir o meu ardente voto; lá ia eu, enfim, — ver e apalpar essas ruínas, de cujas sentidíssimas noticias históricas levava o coração repleto. Na frente, o guia explicava:— Ali, em baixo, é Prado, antiga freguesia. Já teve grandes rendas; — lá está a sua capelinha. Adiante, Remoães, com os seus torreõezinhos e campanários.
— Aqueles telhados, são do estabelecimento das Águas de Melgaço. — Veja daqui, como é bonita a vila, com a sua torre de menagem. Dizem que foi mandada fazer por D. Afonso  Henriques; — ainda lá tem nas muralhas uma porta com o nome deste rei, em uma pedra com mais dizeres, e a data 1170.
— Aquela cinta de muralhas, mais pequenas, é de outro rei.
— D. Diniz, talvez?
— É isso. Já ouvi dizer.
— Estamos agora em Cavaleiros. O nome vem da quinta que pertenceu ao mosteiro. Eu tinha noticia desta propriedade, a qual era essencial em vinhos, e foi doada em 1166, pela condessa D. Frovilla, em tempos do Abade Dom João.
Ha também a suposição de lhe ter sido doada a igreja que lhe era junta, de Nossa Senhora da Ourada, e onde, — diziam os frades, — existiu o mosteiro de S. Bento; fundado quando o de Fiães, de que veio a ser priorado.
Assegura-se, — e disto constam vestígios, — que foi de Cavaleiros Templários, dos quais tomou o nome, e era seu passal. Percebiam-se, há anos, ruínas das celas, claustros, e os encanamentos de pedra, que abasteciam de água o convento.
Lá está Roussas, a igreja do antigo padroado da casa do Paço de Roussas. Era de gente valente e destemida, que se fazia respeitar por aquelas redondezas.
Viveram os abades em demandas contínuas com os de Fiães, durante séculos. Datam de 1340, os primeiros atritos. Em 1349, os de Roussas, quebraram os marcos que dividiam o couto, pelo que tiveram de responder.
Em 1344, com o abade à frente, e armados, foram de noite às terras do convento, e desmolharam as messes de um João Soutello, esbulhando os monges dos seus dízimos.
Condenado o abade Antonio de Castro, não houve quem tivesse coragem de ir-lhe publicar a sentença, por ser pessoa fidalga e poderosa, e morar em lugar ermo — onde se podia fazer mau recado.
Tomou a si, o procurador do convento fazer a citação. Acompanhado do escrivão, meirinhos e mais pessoas, foi a casa do abade, o qual se negou, apesar de estar nela, como o confessou seu filho — um rapaz de dezoito anos, que encontraram a um tiro de besta da pousada.
Prosseguiram as diligências, sem resultado. Então, o de Fiães, obteve do vigário geral de Braga, licença para se dizer missa na igreja do réu, e, em domingo de Ramos, notificou o filho do abade Castro, e o povo que a enchia e era do lugar.
Em 1693, um neto deste abade, Capitão Mór, de acordo com o governador das armas de Melgaço, mandou os soldados praticar desmandos nas terras do couto. Queixaram-se os frades do ódio herdado que esta família alimentava, com prejuízo do sossego e tranquilidade do mosteiro — e nesta vida levaram, os sucessores de uns e de outros, até 1807, em que Francisco de Sá Sotto Maior fez novas demarcações nas terras da freguesia de Roussas, de que era abade, terminando os processos.
Os Senhores do Paço de Roussas, de apelido Besteiros — de antiga família nobre, foram  atingidos pela pobreza.  As suas armas eram em campo azul, uma uma torre fumada em penhas azuis, e três bestas de ouro, uma por cima e as outras aos lados. O solar passou aos Castros, e o padroado, a Manoel Pereira, — o Mil Homens.
Prosseguimos, lentamente, por terras incultas. Apesar de abundantes em águas, só ao longe descobri raras plantações de milho ou de centeio.
No terreno acidentado há montes a prumo, como ameaça tenebrosa à população do lugar. Já há anos, uma dessas molhes imensas desabou lá de cima, e veiu como um cataclismo medonho, destruindo na sua passagem horrorosa, casas, árvores e plantações, na direcção de uma capela da encosta.
No momento em que todos esperavam vê-la arrasada, aquela separou-se em duas que precipitaram-se pelos lados da ermida, deixando-a intacta. Foram muitas as mortes, do que  ficou sentida recordação que ainda perdura, apesar do facto ter-se passado há cerca de trinta anos.
Têem-se repetido estas deslocações, deixando sempre dolorosa reminiscência. Tivemos que retardar o andamento, para abrir caminho por entre rebanhos de grandes e lanzudos carneiros, de cor têrrea, que pastavam, ocupando enorme área que atravessamos. Há tempos, andou por aqui uma fera vinda das povoações galegas, a qual devastou a freguesia. Encontravam-se restos humanos devorados, e o povo vivia aterrado, saindo unicamente de companhia e bem armado. Fizeram-se várias batidas infrutiferas. Começou então o pânico de atribuir à arte do demónio e à feitiçaria, esses factos. Em vista do que reuniram-se os moradores dos arredores, e, depois de bem preparados, fizeram uma grande montaria em todos os sentidos, encontrando apenas uma criança maltratada pela fera, que as vacas, que aquela guardava, providencialmente salvaram, investindo contra o feroz animal e pondo-o em fuga.
Nunca mais dele houve indício ou noticia. Chamou-me à atenção, no meio da serra, — em lugar alcantilado, — uma abertura de mais de metro e meio com porta de ferro.
— Que era aquilo ?
Um velho morador que passava, parou e disse, solenemente:
— Ali, estão escondidos os tesouros dos frades. Quem lá vai, lá fica. Foi a justiça quem mandou pôr o tapamento.
Andava ali tudo maluco com as riquezas e agora acabou-se.
Oh! Os informadores obsequiosos, são terríveis em toda a parte...”  (Extrato retirado de: OLIVEIRA, Gilherme (1903) - Uma visita às ruínas do Real Mosteiro de Fiães. Livraria Ferreira, LIsboa.)

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