quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

O cerco a Melgaço (1388) na Crónica d' El Rey D. João I (Parte II)




Capítulo CXXXV
Da bastida e escalas que el-rei mandou fazer

"Havendo nove dias que el-rei jazia sobre este logar, tendo já os da villa lançadas sessenta pedras de trons que não fizeram porém damno, mandou el-rei armar um engenho em cima da ponte da villa e logo esta quarta-feira lançou cinco pedras, e tres foram dentro no logar e duas deram no muro, e responderam-lhe de dentro com doze pedras de trons, que nenhum damno fizeram. À quinta feira lançou do engenho vinte e cinco pedras, das quaes deram dezasseis no muro, e duas em dois caramanchões, que foram logo derribados, e as sete cahiram na villa, que fizeram gran perda em casas que derribaram e destruíram. Com esto não quedavam de derribar, e acarretar a madeira que el-rei mandava fazer pera fazer duas escalas e uma bastida pera mover todo juntamente e pousar sobre o muro, e como foi lavrada fizeram as rodas do carro pera a bastida, em que havia em grosso por testa dois palmos, e de roda a roda em ancho treze cavados, e ao longo, de padral a padral, que ia por cima d' ellas. Havia vinte e seis cavados, e em alto, d'onde se começava por cima dos carros, havia treze braças e meia. Em ella havia trez sobrados pera irem homens d'armas e besteiros juntos ou apartados, como vissem que cumpria, o qual sobrado primeiro ia madeirado de pontões mui grossos, estrados de mui grossos caniços pera andarem por cima. Havia d'arredor cento e trinta e seis pontões, e a parte de traz ficava aberta, em que iam escadas d'alçapão por que haviam de subir; e por esta guisa o segundo sobrado que havia de redor cento e vinte e quatro oontões, e o terceiro cento e trinta escadas d'alçapão de um a outro, e em cima d'este sobrado outro pequeno com cento e vinte oito meios pontões de redor, em que iam trez mil pedras de mão, que mandaram apanhar as regateiras, e no segundo sobrado quinze trebolhas grandes cheias de vinagre, pera deitar ao fogo se lho lançassem, e esta bastida levava diante seis grandes caniços forrados de carqueja, e vinte e quatro couros de bois, verdes, pregados sobre ella por guarda do fogo e dos trons.
Mandou mais fazer duas escalas, que levava cada uma quatro rodas e os eixos de ferro bem grossos, e sobre ellas seis traves altas como esteios, acompanhadas d'outros paus pera se manterem, não todos de uma altura, segundo cumpriam, e em cada uma duas poles de guindar, que guindavam doze cabres grossos de linho canhene; e trez debadouras de traz pera guindarem, e dois grandes cabrestantes, como de naus, e iam cada uma escala pregadas de táboas grossas sobre quatro paus compridos como pontões, em que havia de longo quarenta e oito covados, e em ancho nove, e cincoenta degraus de meios pontões e caniços, e couros de vaca, verdes, nos logares onde cumpria, para irem cada um da parte da bastida.

E todo esto foi feito em quinze dias, e não quedavam em tanto de fazer caminhos e calçada, por onde haviam de ir a bastida e escadas."

.....................................................CONTINUA.......................................................

Extraído de: LOPES, Fernão (1897) - Chrónica d' El-Rei J. João I. Vol. IV, Edição da Bibliotheca de Classicos Portuguezes, Lisboa. 

sábado, 25 de janeiro de 2014

O cerco a Melgaço (1388) na Crónica d' El Rey D. João I (Parte I)





CAPÍTULO CXXXIV
Como El Rei foi cercar Melgaço 

"Tornando a el-rei, que ficou em Braga assaz fadigado da guerra em que era, pero fosse tempo de inverno, não deu vagar porém a seu trabalho, e ordenou de ir sobre Melgaço, cinco léguas acima de Tuy, e meia Iegua do rio Minho, villa cercada sem arrabalde, de bom muro e forte castello, do senhorio de seu reino, que lhe tinham os inimigos tomada.
A este logar chegou el-rei com sua hoste, e era no mez de janeiro, na qual ia D. Pedro de Castro e o Priol do Esprital, e João Fernandes Pacheco e outros capitães e senhores, e seriam por todos umas mil e quinhentas lanças, e muita gente de pé.
E os que dentro estavam por defensão do lugar, eram Alvaro Paes de Souto Maior e Diogo Preto Eximeno, e em sua companhia até trezentos homens d'armas e outros muitos peões escudados.
E logo como el-rei chegou, foram armadas as tendas e pousado o arraial, não porém longe da villa, e sem dar mais espaço, começaram de dentro d'atirar os trons e escaramucar com os de fora, e não se fez dano de nenhuma parte a outra, nem com os trons que lançaram.
No seguinte dia escaramuçaram e deram uma setada a Pero Lourenço de Távora, e da villa morreram alguns. e foram outros feridos; e pero este dia lançassem nove pedras de trons aos do arraial, não lhe fizeram nojo, e nos dois dias depois este, lançaram vinte pedras sem outra escaramuça, que não fizeram dano.

À sexta-feira não lançaram trons, mas foi uma escaramuça, em que mataram um do arraial e foram feridos muitos de uma parte e da outra, e ao sábado lançaram três trons e um de noite, sem fazer nojo. Ao domingo foi feita uma escaramuça entre os da villa e os de D. Pedro de Castro, e mataram dos de D. Pedro um homem d'armas e dois de pé, e d'outros, por todos até seis, e da villa foram alguns feridos, e nenhum morto. Nos dois dias seguintes, deitaram oito trons que não fizeram dano."


...................................................................CONTINUA............................................................................

Extraído de: LOPES, Fernão (1897) - Chrónica d' El-Rei J. João I. Vol. IV, Edição da Bibliotheca de Classicos Portuguezes, Lisboa. 

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

O Hotel Ranhada nos tempos de glória (Peso do Minho, meados do séc. XX)


D. Amélia Moutinho, dona do Porto Meia, é há muito hóspede do Hotel Ranhada, está cá todos os anos, traz motorista e dama de companhia, já tem reserva para os primeiros vinte dias deste Setembro que vem, prefere sempre o Setembro, e faz bem em não escolher o Agosto, ao menos escapa ao irritadiço marido da senhora Condessa de Feijó. É uma criatura insuportável aquele homem assim baixinho e gordinho, oh! se não é. Em Setembro que vem teremos aqui no Hotel Ranhada os Teixeira, eles são donos de uma cadeia de talhos. Trazem a família toda, são para aí umas trinta pessoas. Vêm os avós, os netos, as noras, as sogras, a prole é de banzar. São dos mais antigos hóspedes do Hotel Ranhada. Esta família já cá vem a águas desde finais do século XIX, os mais velhos ainda privaram com o fundador, o senhor António Maria Ranhada. Hóspedes tão antigos como eles só os da família Linhares. Um dia antes de se instalarem, já cá está uma carrinha para despejar as malas todas. Menos canseiras dão os lavradores ricos que chegam por finais de Setembro e que por aqui ficam até 10 de Outubro, se tanto. O senhor Mário Ranhada chama-lhes os “hóspedes das castanhas”. Nesta última leva chegam os Sousa Lopes, que, não contentes com o que ganham na lavoura, ainda se metem a fabricar botões. Pelo fim desta manhã de Agosto, há-de comentar-se à mesa, com pilhéria, estas e outras bugiarias.

Fonte: "Termas de Melgaço: os dias saborosos de uma glória submersa", texto de Pedro Leitão, in: SIM, Revista do Minho, editado em 6 de Maio de 2013.
Artigo gentilmente enviado por pela Sra. Teresa Lobato a quem agradeço a partilha!

domingo, 19 de janeiro de 2014

O significado de inscrições em monumentos melgacenses V

A inscrição na muralha do castelo de Melgaço

A inscrição na muralha do castelo de Melgaço (Foto de C. H. Ivens - 1898)

Certamente, muito de vocês já passaram junto a esta inscrição que nos chegou até aos nossos dias em muito bom estado de conservação e que se encontra junto à porta da muralha ao fundo da rua Direita.  Mas o que diz esta inscrição?
Diz o seguinte:
(recorte retirado de VASCONCELOS, José Leite (1898))

Em português significa:


(recorte retirado de VASCONCELOS, José Leite (1898)

Trata-se de uma inscrição lavrada em latim comemorativa da construção de parte da muralha de Melgaço, gravada ao longo de três silhares da face externa do muro, à direita da porta que facultava acesso à via que conduzia a Valadares e a Monção.
A análise da inscrição da muralha de Melgaço foi publicada pela primeira vez nos fins do séc. XIX por José Leite de Vasconcelos numa versão correcta e acompanhada de magnífica gravura (VASCONCELOS J.L. 1898). Nesta ainda é possível ver, junto do A de VILLAN, uma argola de ferro, chumbada na parede, certamente destinada a prender animais de carga. Hoje essa argola foi retirada, o que se traduziu na mutilação da parte terminal da penúltima regra do letreiro, por lascagem do silhar. No entanto, a gravura publicada por José Leite de Vasconcelos permite a leitura integral de "VILLAN", confirmando a nossa transcrição. Alguns anos mais tarde, em 1921, a inscrição seria de novo referida, sem leitura, no Arrolamento de monumentos do distrito de Viana do Castelo estabelecido por Júlio de Lemos. No ano seguinte, em 1922, Francisco Marques de Sousa Viterbo registava o nome de Fernando, mestre construtor da muralha de Melgaço, no terceiro e último volume do seu Diccionário Histórico e Documental de Arquitectos, Engenheiros e Construtores Portugueses, sem divulgar leitura do letreiro e remetendo o leitor para o artigo de Leite de Vasconcelos. Alguns anos mais tarde, Garcês Teixeira divulgou nova versão do letreiro de Melgaço, com pequeno erro no início da última regra, onde leu "[HAC]" em vez de IN (h)AC. Num momento de clara infelicidade, Garcês Teixeira apresentaria a inscrição como inédita e sublinhava que Sousa Viterbo não referia o nome de Mestre Fernando no seu Dicionário. Como já tivemos oportunidade de ver, a inscrição já fora publicada por Leite de Vasconcelos (lapso que Garcês Teixeira ainda teve oportunidade de corrigir, e o nome de Mestre Fernando fora referido por Sousa Viterbo.
Em 1975 o P.e M. A. Bernardo Pintor voltaria a publicar a inscrição da porta da Muralha de Melgaço, apresentando lição quase correcta mas onde se devem anotar algumas incorrecções: corrigiu para “M” todas as terminações em “N” da inscrição (um pormenor para o qual já chamara a atenção J. Leite de Vasconcelos), suprimiu um dos LL de CASTELLARIUS e transcreveu os numerais da Era em números árabes.
Em 1978 seria a vez de Carlos Alberto Ferreira de Almeida divulgar a sua versão da inscrição de Melgaço, apenas incorrendo em pequeno erro na parte terminal, onde leu "... VILLA IN / HAC PARTE", e corrigindo os NN para MM (em "COMPUSUIT", "MURUM" e "ISTUM"). Depois de Carlos Alberto Ferreira de Almeida, a inscrição de Melgaço não seria mais nenhuma vez publicada na sua versão original uma vez que Matos dos Reis se limitou a transcrever a tradução do seu conteúdo.
A inscrição da muralha de Melgaço apresenta uma curiosa paginação, que nenhum dos autores que a ela se reportou teve ensejo de sublinhar. Efectivamente, o primeiro silhar, uma pedra de grandes dimensões, tem a sua superfície dividida de forma quase equitativa em três regras, onde o texto se distribui de forma uniforme e regular. Ela revela uma programação relativamente cuidada por parte do seu autor. No final da terceira regra, encontramos a data - Era Ma CCCa Ia - que parece encerrar o letreiro tal como ele foi planeado inicialmente. E, efectivamente, as três linhas seguintes, que já não obedecem ao rigor de paginação da primeira parte, parecem corresponder, em termos de conteúdo e redacção, a um acrescento ao texto original, feito em momento posterior. No entanto, devemos sublinhar que, paleograficamente, o letreiro foi feito pelo mesmo autor ou lapicida, quer na "primeira" quer na "segunda" parte. Os dois momentos teriam sido, portanto, muito pouco afastados entre si, talvez quase consecutivos. Poderemos, portanto, estar perante uma inscrição que foi gravada em versão curta (até à indicação da Era) e que depois foi completada com o restante texto. Os motivos que estiveram, eventualmente, por detrás dessa circunstância poderiam ter a ver com a vontade pessoal de Martinho Gonçalves, Casteleiro do monarca em Melgaço, de ter o seu nome perpetuado junto do muro da vila. Ou, como veremos de seguida, talvez pela necessidade de esclarecer que a iniciativa régia apenas se circunscrevera a essa porção do muro, e não se estendera à sua totalidade.
Melgaço recebeu Carta de Foral das mãos de D. Afonso Henriques em 21 de Julho de [1183], um diploma que seria confirmado por D. Afonso II em 1219. Este diploma seria substituído em 1258 por nova Carta de Foral, outorgada por D. Afonso III a 29 de Abril desse ano. No entanto, e perante a resistência oferecida pelos habitantes de Melgaço, o novo diploma seria suspenso e o primeiro de novo restaurado em 1261.
O início da construção da muralha de Melgaço remonta, pelo menos, aos tempos de D. Sancho II. A necessidade de dotar a povoação de um sistema defensivo eficaz foi sublinhada pelos eventos que, no quadro da contenda entre D. Afonso II e as Infantas suas irmãs, conduziram à invasão do Norte de Portugal pelas forças leonesas, em 1211-1212, altura em que Melgaço foi tomada. Não admira, portanto, que no reinado de D. Sancho II, a construção de uma muralha em Melgaço estivesse na ordem do dia. E, efectivamente, em Fevereiro de 1245 o Mosteiro de Fiães comprometeu-se a comparticipar na empresa com a construção de 18 braças de muro na zona onde se encontrava a adega, incluindo-se nessa extensão uma torre. Este documento não pode deixar de ser equacionado com os conturbados tempos que o país atravessava e que culminariam em verdadeira Guerra Civil a partir dos meados desse ano, levando D. Afonso III ao poder. O diploma revela-nos que em 1245 o muro já estaria em construção e ajuda-nos, também, a compreender melhor as circunstâncias que ditaram que, na nossa inscrição o lapicida se preocupasse em assinalar que Martinho Gonçalves circundara a vila nessa parte (CIRCUNDAVIT HANC VILLAN IN (h)AC PARTE). É que nem todas as partes do muro foram construídas por responsabilidade do concelho e erguidas no tempo de D. Afonso III. Havia, por certo, porções que tinham sido construídas por outras entidades e nos fins do reinado de D. Sancho II.
E como no diploma de Fevereiro de 1245 o Abade e Mosteiro de Fiães se comprometiam a reparar, sempre que fosse necessário, a porção de muro que iriam erguer, convinha esclarecer definitivamente que a iniciativa do monarca e do Casteleiro se devia circunscrever a essa parte e não alargar a toda a extensão do muro defensivo da vila. E que se a inscrição declarasse que a muralha fora erguida na sua totalidade por D. Afonso III, o Mosteiro de Fiães poderia sempre alegar, em futuros momentos, que não tinha responsabilidade sobre a sua construção e, logo, sobre a sua reparação.

Mas, por outro lado, a inscrição da muralha de Melgaço não pode deixar de ser equacionada no contexto de um esforço régio de dotar o país de uma defesa mais eficaz junto da fronteira terrestre e fluvial com o vizinho reino de Leão e Castela, e no qual se devem incluir as inscrições de Caminha (de 1260), de Estremoz (de 1261) e de Castro Marim (de 1274), para apenas focar as que foram devidas à iniciativa de D. Afonso III ou cuja conclusão foi incrementada pelo monarca.

Nota: Na inscrição, o ano de 1301 corresponde ao ano de 1263, devido à passagem da era de César para a era cristã para efeitos de contagem dos anos. Até então os anos contavam-se a partir do nascimento do imperador romano Caio Júlio César Augusto (38 a C.). A partir de 1422 (ano de 1460 da era de César), por iniciativa do rei D. João I, a referência para a contagem dos anos passa a ser o nascimento de Jesus Cristo. Daí a diferença de 38 anos.



Informações extraídas de:
- BARROCA, Mário Jorge (2000) - Epigrafia Medieval Portuguesa - (862-1422), vol. II, CORPUS EPIGRAFICO MEDIEVAL PORTUGUÊS. Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Porto.
- VASCONCELOS, José Leite (1898) - Inscrição latina de Melgaço do século XIII. Revista "O Archeologo Português".

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

A tia Miquelina de Golães (Paderne, 1904?): uma parteira do tempo dos nossos avós


A tia Miquelina, de Golães (Paderne - Melgaço), era parteira muito considerada, no concelho. Contava 76 Janeiros quando o autor a conheceu, e recitou-lhe, em três conversas, todo o dialogo extenso de uma comédia: muitos trechos de uma narrativa da guerra da Liberdade (em prosa), versos históricos, cantigas, orações, romances ou xácaras, ensalmos, profecias do D. Sebastião, pormenores da Revolução de 1640. Pessoa muito agradável, viva, desembaraçada. Era vê-la e ouvi-la, de chinelas, sem meias, lenço caído da cabeça em volta do pescoço, chambre azul, saia preta mosqueada do verde e branco, mandil, sentada nos degraus da varanda, a falar, a falar....



Extraído de: VASCONCELOS, José Leite de (1937) -  Fontes de Investigação etnográfica. Boletim de Etnografia; Publicação do Museu Etnológico do Dr. José Leite de Vasconcelos, Nº 5. Lisboa.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

1911 - A Ponte Internacional de S: Gregório e a demissão do ministro da Guerra


Joaquim Pereira Pimenta de Castro nasceu a 5 de Novembro de 1846, em Pias, Monção, e faleceu a 14 de Maio de 1918, em Lisboa.
Em 1911 foi convidado para o cargo de ministro da Guerra no primeiro governo constitucional de João Chagas (3 de Setembro a 7 de Novembro desse ano), resistindo, com alguma dificuldade, às tentativas de contra-golpe dos monárquicos.
Durante o desempenho do cargo de ministro da Guerra, envolveu-se em conflitos com outros membros do governo e o próprio chefe do governo João Chagas. Acabaria demitido pelo próprio João Chagas por via da sua suspeita passividade ante os manejos conspirativos dos couceiristas (forças fieis à causa monárquica comandadas pelo general Paiva Couceiro que tentava voltar a estabelecer a monarquia). Havia quem dissesse que o próprio era simpatizante dos monárquicos e por isso era acusado de ser um traidor.
O episódio da sua demissão fica associado a uma curiosa conversa acesa no Conselho de Ministros de 8 de Outubro de 1911. O primo do general, Gonçalo Pereira Pimenta de Castro narra, nas suas memórias, uma curiosa versão dos acontecimentos que conduziram à demissão de Pimenta de Castro: 
“O Dr. Eduardo de Abreu, devido à sua doença, não assumiu a Presidência do Ministério. Era ele que devia substituir o general Pimenta de Castro, e não o mulato do João Chagas, que como habilitações literárias, nem o curso do liceu possuía, e como moral, noutros tempos era conhecido pelo homem da Margarida. O general resolveu passar a desfruta (gozar) o tal senhor Chagas, que parece não era muito corajoso, como é próprio dos mestiços: Circulava o rumor de que Paiva Couceiro estava atravessando a ponte internacional de S. Gregório com sete mil homens. — «Como o caso é gravíssimo, quero saber, senhor Ministro da Guerra, que medidas de defesa adoptou e quais as que tenciona adoptar?» — Pimenta de Castro, natural de Monção, sabia que a ponte internacional sobre o rio S. Gregório, não passava de um tronco de árvore atravessado sobre o pequeno rio. Desfrutou o mulato dizendo-lhe:
— «Sete mil homens devem despender quinze dias a atravessar a ponte internacional de S. Gregório».
— «Que defesa pensa estabelecer o senhor Ministro da Guerra e que tropas mandou para lá?»
— «Tenho lá as tropas que lá estavam (não estavam nenhumas!) e mais as que para lá vou mandar (não mandou coisa alguma!)».
Paiva Couceiro não estava em S. Gregório, nem pessoa alguma. Isso porém é que ele não quis confessar.
O mulato Chagas ficou aterrado ante os sete mil homens de Paiva Couceiro, e mais ainda, porque o Ministro da Guerra não o defendia do fantasma desse Couceiro. Chamou o general e disse-lhe para pedir a exoneração. Pimenta de Castro respondeu-lhe:
— «Não peço coisa alguma» 
Acabou demititido.
— «Pedir alguma coisa àquele mulato, que nem sei quem é?... Antes ser demitido do que pedir-lhe alguma coisa!» — Exclamava mais tarde o General”.
Na realidade, não chegavam a mil homens a gente de Couceiro. Batera-se com poucos um ano antes, com poucos e mal armados continuava a bater-se. A monarquia não ateava a fé, desacreditara-se. Só duzentos e cinquenta desses homens iam armados e só de pistolas”.
João Chagas ficaria agastado com a demissão do seu Ministro da Guerra e, no Congresso, recusou-se a explicar as razões daquela ruptura.


Extraído de: MARÇAL, Bruno José Navarro - (2010) - Governo de Pimenta de Castro - Um General no Labirinto da I República. Universidade de LIsboa, Faculdade de Letras, Departamento de História. 


sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Morreu Augusto César Esteves (1964)




O Dr. Augusto César Esteves é um dos melgacenses mais notáveis de todo o século XX. Deixou-nos um enorme legado…
Faleceu na sua casa da Rua da Calçada, pelas 18 horas do dia 26 de Março de 1964. E a 5 de Abril desse mesmo ano, o jornal Notícias de Melgaço, prestou-Ihe uma sentida homenagem, enchendo a 1ª página com um arrebatado elogio fúnebre:

Sit Tibi Terra Levis

Morreu Augusto Esteves!
Silêncio!
Deixou de bater um grande e generoso coração. Paralisou para sempre um cérebro em constante evolução; uma inteligência penetrante e esclarecida, em plena pujança, ansiosa de perfeição. Ao recordá-lo vivemos uma hora de amargo abatimento, de emoção e profunda concentração. Melgacense fiel e companheiro de lutas dedicado, passou entre nós como um raio de sol quente, acolhedor, leal, acariciador e benfazejo.
O seu olhar franco e amigo espelhava o fogo interior dos seus nobres sentimentos, do seu entusiasmo e desejo de servir a sua terra, que tanto amou e para a qual viveu. Servir Melgaço sem limitações; servir com ânimo firme e de coração aberto a todas as causas justas; servir por devoção e por idealismo a sagrada causa da democracia e os grandes problemas em que se debate a humanidade.
Disse um dos grandes do pensamento de todos tempos, Gabriel d' Anunzio, referindo-se à morte de Wagner: O mundo perdendo Wagner ficou menor... E se é verdade que só os homens de sensibilidade rara, se podem aperceber da perda que o mundo sofre com a morte de um dos seus elementos mais representativos, também os melgacenses devem sentir, amargamente, o que para Melgaço representa a morte de Augusto Esteves, como político, como bairrista até à loucura, como funcionário, como jornalista distinto, como polígrafo e historiador notável.
Na visita que lhe fizemos há poucos dias, aparentemente o seu estado de saúde e a sua boa disposição na animada conversa que entretivemos, não nos revelou nada de grave que fizesse recear e prever o inesperado e chocante acontecimento da sua morte! Porém, a vida é um estágio efémero dentro da transformação da matéria, c o vendaval da morte não poupa ninguém, atinge os fracos e os fortes.
De compleição débil no conspecto físico, a sua vida interior revelava-se por verdadeiros clarões de entusiasmo e de acrisolado amor a tudo quanto de longe ou de perto está ligado a Melgaço e para ele, o distrito, o país, o seu único mundo, confinava-se nos limites estreitos desta terra melgacense.
Existir e transitar no plano terreno é comum a todos os seres. Porém viver e conviver é mais transcendente, é próprio dos seres humanos.
Augusto Esteves não compreendia um homem só no seu mundo melgacense, alheado de tudo e de todos. E sim um mundo só, um único mundo, de todo sós melgacenses.
No seu admirável espírito iconológico o bairrismo cegava-o, ampliava desmesuradamente o valor e a beleza dos monumentos e da história dos sucessos a eles ligada. Para ele tudo era incomensuravelmente grande, enorme, ímpar, desde que tivesse existido, em qualquer época, nesta sua amada terra.
A origem nativa era tudo e só isto contava; o resto estava fora de um mundo que não era o seu ...
Amigo de há quase meio século, o nosso coração veste de crepes nesta hora emocional e triste e os nossos lábios ciciam, baixinho, a oração que espontânea e amarguradamente a alma reza e a saudade dita.  
Morreu Augusto Esteves!
Morreu para a vida mas a sua memória viverá na nossa recordação para lodo o sempre.
Desapareceu um companheiro de lutas, um correligionário e um amigo lealíssimo que criou no nosso coração fundas raízes de amizade e de estima; que se impôs pelo espírito, pela austeridade, pela força e brilho do seu pensamento.
Melgacenses: curvemo-nos respeitosamente perante o seu cadáver e elevemos a nossa alma em sentida prece para
Que a terra lhe seja leve!


Texto de Ferreira da Silva, 

in: Notícias de Melgaço, edição de  5 de Abril de 1964.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

S. Paio de Melgaço (1896) - O Pão de Santo António ajuda os mais pobres



A Pia União e Pão dos Pobres de Santo António em Portugal, era uma instituição fundada aquando das comemorações centenárias do nascimento de Santo António. Tinha como fins: dar graças a Deus pelo dom que ofereceu à Humanidade na pessoa de Santo António; pedir ao santo a intercessão pela conversão de judeus, pagãos e pecadores; ajudar os pobres com ofertas de pão. Foi esta acção caritativa que melhor contribuiu para o sucesso de Pia União tendo-se constituído Núcleos de Pão dos Pobres em todo o país.
A Pia União de Santo António foi fundada a 14 de Fevereiro de 1894. A Voz de Santo António foi uma publicação mensal, órgão da Pia União de Santo António, próxima da Ordem dos Frades Menores, e estava intimamente ligada à Ordem Terceira Franciscana. Publicou-se entre Janeiro de 1895 e Abril de 1910. Dirigida e pensada a partir do Convento Franciscano de Montariol (Braga), a Voz de Santo António, seria um dos referenciais do pensamento social democrata-cristão do catolicismo português na primeira década do século XX.
O periódico surge no contexto de renovação católica desenvolvida  durante  o  pontificado  de  Leão XIII, também ele um terceiro franciscano, e o impulsionador  da reunião das diferentes famílias franciscanas (União Leonina de 1897).
Nesse espírito de revitalização do catolicismo, Portugal assiste, no ano em que se funda a revista, ao Congresso Católico Internacional de Santo António durante as comemorações do 7º Centenário do nascimento do santo português. Este acontecimento teria o apoio e a colaboração do núncio apostólico de Lisboa, Monsenhor Domenico Jacobini, e do próprio Papa, tornando-se um dos momentos fundamentais do movimento social católico.
Voz de Santo António é conhecida por ter sido o centro de uma acesa polémica desencadeada no seio do catolicismo português, nos últimos dois anos da Monarquia Constitucional, naquilo que ficou conhecido como a «Questão da Voz de Santo António», que opôs este periódico à maioria da imprensa católica, porque aquele apresentava linhas de reflexão democrata-cristã (de inspiração leonina) e esta representava os princípios defendidos pelo Partido Nacionalista. Devido a essa polémica, a publicação foi suspensa pelo Vaticano em 11 de Julho de 1910.
Na publicação A Voz de Santo António, na edição de Dezembro de 1896, dá-nos conta de uma carta do padre José Bento de Fontes da paróquia S. Paio (à época chamada de S. Paio de Melgaço), datada de 6 de Dezembro de 1896.
Neste recorte, dá-nos conta que a Pia União tinha na paróquia muitos simpatizantes e benfeitores. Fala também que em São Paio existia o Pão de Santo António, que procurava atenuar a miséria que havia na paróquia à época.




Fonte: - A voz de Santo António, revista mensal illustrada. Orgão da Pia União e do Pão de Santo António e Boletim da Ordem Terceira de São Francisco. Edição de Dezembro de 1896. Anno 2º.
            - http://www.ft.lisboa.ucp.pt

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Praça da República (Melgaço) em postal antigo (1924)

Trata-se de um postal antigo enviado de Melgaço para Sesimbra em 22 de Agosto de 1924. Segundo a mensagem escrita no verso, foi redigido no Hotel Ranhada. O seu autor julga que o Peso pertence a Monção daí que escreva "Peso - Monção". 

Edição exclusiva "A Lusitana" de J. Ranhada & C.


sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

O Tenente da Guarda (Parte VII)

Aveleira

Na sala grande, frente ao televisor, uma senhora idosa estava sentada no cadeirão de couro castanho a condizer com a restante mobília. Ao fundo, no fogão de sala, amorrinhavam algumas brasas.
Cabelos brancos, um rosto enrugado onde sobressaíam os olhos negros, com mais vida que o corpo alquebrado. Fez um esforço e ergueu-se apoiada na bengala. Fomos ao seu encontro, instalamo-nos no sofá à sua direita. O Esteves quis oferecer-nos os aperitivos que recusamos. Estava mais interessado em ouvir a anciã e a Paula ainda estava mais curiosa que eu.
- Então foram vocês que encontraram o esqueleto lá em cima?
- Lá em cima? – Perguntei.
- Sim, na Branda da Aveleira.
- Ah!… Sim, fomos nós.
- Ó Mingos, vai-te lá embora, que tenho que falar com estes senhores.
- Mas avó, não vê…
- Nem mas, nem meio mas… Quando acabar, eu chamo-te. E não te esqueças de dizer à tua mulher para pôr mais dois pratos.
Obedientemente o Esteves saiu e fechou a porta atrás de si. Notava-se que a velhota tinha uma personalidade forte, apesar da idade e que sabia muito bem impor a sua vontade. Encarou-nos com um olhar tão agudo que me incomodou e começou a falar.
- Quero que me prometam nunca dizer a ninguém aquilo que vos vou contar. Mas a ninguém mesmo, compreendem?
- Sim…
- Então prometam!
- Ok, prometemos…
- A senhora também – diz a velhota, olhando a Paula.
- Prometo, mas porque é que nos quer contar não sabemos o quê, se nem nos conhece e nem quer que o seu neto escute?
- Já vos explico tudo, – inclinou-se para a frente, as mãos apoiadas na bengala, a voz mais baixa meio-tom – eu não sou desta terra, mas de uma freguesia perto da raia. Vim para cá depois de casar com o meu Afonso, que Deus tenha… - fez um silêncio significativo em sua memória e prosseguiu – Mas não é disso que vos quero falar. Eu sou de uma aldeia lá mais para riba, perto de Espanha e antigamente nós só sobrevivíamos com a ajuda do contrabando. A terra pouco dava, é como hoje, e a carregar umas coisinhas para lá e para cá, amanhávamos mais uns tostões. Era uma vida miserável, meus filhos! Na aldeia havia um grupo de homens que carregavam os burros e as mulas com o que os verdadeiros contrabandistas queriam, lá iam eles por aqueles montes acima, sempre com medo dos carabineiros espanhóis que eram uns malandros. Os nossos eram melhores, bastava dar-lhes qualquer coisa e fechavam os olhos, coitados, também passavam mal só com o soldo da Guarda. Mas havia um deles, o comandante que era um filho da puta, com a vossa licença e que muito nos apoquentou. Levou preso o meu irmão que era o que dava as ordens aos outros homens. Ainda esteve em Melgaço algumas semanas, já não sei quantas, a passar fome e a levar porrada para falar. Esse Guarda, um tenente, fez-nos a vida negra durante meses e meses, embirrou com a nossa aldeia e com os de Castro Laboreiro onde uma noite a Guarda, por ordem dele, matou dois homens a tiro. Um dia disse para o Alípio, o meu irmão, que tínhamos de apanhar esse cachorro do tenente. Ao princípio ele recusou com medo, mas levei a minha avante e preparamos-lhe uma armadilha. Ninguém mais sabia o que preparávamos, só eu e ele. Conseguimos que o tenente viesse sozinho aqui à Gave, eu levei-o por um carreiro e o Alípio abateu-o com uma cachaporra na cabeça. Morreu ali mesmo e nem lhe valeu ter a pistola na mão. Levamo-lo para a Branda e enterramo-lo ainda durante a noite. Por cautela, matamos a mula que o carregou e deixamo-la a apodrecer por cima da tumba do tenente. Assim, o mau cheiro afastava qualquer um que ali passasse. Logo que acabamos de o enterrar, metemo-nos a caminho para a Espanha pelos caminhos mais difíceis e depois de muitos sacrifícios chegamos a França, onde vivemos mais de trinta anos. Durante mais de uma semana andaram à procura do tenente, mas não encontraram rasto dele. Um dia encontraram o boné e o casaco da sua farda perto de Ourense, fomos nós que a levamos para lá, deixando-a onde era fácil encontrá-la. Só para desviar as suspeitas e eles pensarem que o tenente tinha sido levado para Espanha. Deu resultado porque deixaram de o procurar deste lado. Quando cheguei a França comecei logo a trabalhar, a fazer limpezas e a ajudar no mercado, ainda de madrugada, mas acabei por abortar. Foi quando conheci o meu Afonso, que trabalhava nas obras do hospital e ia visitar-me sempre que podia. Estive muito mal, quase três meses sem me poder mexer.
- Espere aí! Então abortou mal chegou a França e só depois é que conheceu aquele que iria ser o seu marido? Foi assim?...
- Foi...
- Então quem era o pai? Hum... Desculpe, se calhar não devia ter perguntado...
- Não faz mal, meus filhos. Já passou tanto tempo e eu prefiro contar-vos a verdade que levá-la comigo para o além. O pai era esse filho da puta do tenente, com a vossa licença. Foi ele que me fez o filho e depois negou-o. Assinou a sentença no dia em que se riu na minha cara a dizer-me que não me conhecia de banda nenhuma, a mim, que me entreguei a ele apenas para não voltar a prender o nosso Alípio. Ahhh... mas pagou-as! Só tive medo que ele reconhecesse a minha voz quando o fui chamar, apesar de a ter disfarçado. Estão a ver, se ele me reconhecesse ia o plano por água abaixo, mas tudo correu bem. A história acaba aqui, senhores. O meu irmão já morreu há doze anos e quando se estava a finar, obrigou-me a prometer-lhe que se um dia o cadáver fosse descoberto eu devia contar a verdade a alguém.
- E porque é que nos escolheu Dona… nem sabemos como se chama?
- Chamo-me Maria Rita e escolhi-os porque foram vocês que o descobriram e porque queria conhecê-los.
- Mas nós podíamos agora ir contar tudo à polícia.
- Ora, uma promessa é para se cumprir… e vocês prometeram!


Fim







Fonte: Este interessante texto foi publicado no blogue "Vila Praia de Âncora" em http://vilapraiadeancora.blogs.sapo.pt. Não resisti a partilhá-lo com vocês!
Autor do texto: Brito Ribeiro.